Os Crimes de Diogo Alves é um filme mudo português de curta-metragem da autoria de João Tavares (realizador), a segunda obra de ficção do cinema português. Estreou a 26 de Abril de 1911 no Salão da Trindade, entrando em cartaz na sala O Paraíso de Lisboa a 19 de Maio do mesmo ano. O filme foi apresentado em "versão falada", com vozes por trás da tela, e acompanhado com música executada pela orquestra da Guarda Nacional Republicana, dirigida pelo maestro Artur Fão.
Sinopse
O filme ilustra a vida de Diogo Alves, um espanhol que veio viver para Lisboa e que, entre 1836 e 1839, perpetrou vários crimes hediondos, muitos deles instigados pela sua companheira Parreirinha.
Filme completo ajustado por mim
- Corrigi o framerate de 25 fps para 18 fps. Quem restaurou o filme não teve em conta as diferentes velocidades usadas no equipamento da época (1911).
- Criei uma banda sonora completa, ajustada cena a cena, conforme a acção e ambiente. Utilizei como fonte, um leque de dezenas de músicas disponíveis no You Tube, com diversos ajustes meus.
Esta portanto será a versão portuguesa "Zé da Adega" de Maio de 2017, estou a planear criar também uma versão inglesa, com novos intertítulos (em substituição dos intertítulos originais portugueses de 1911).
A versão oficial não possui som e tem a velocidade errada de 25 fps. Está aqui se quiserem comparar com a "minha" versão completa modificada:
Este filme é extraordinário no contexto do cinema mundial, por vários motivos, um deles é a existência de diálogos. "O filme foi apresentado em "versão falada", com vozes por trás da tela, e acompanhado com música executada pela orquestra da Guarda Nacional Republicana, dirigida pelo maestro Artur Fão." O acolhimento do público excedeu toda a expectativa e, de 1911 a 1914, em múltiplas reposições, o filme foi chorudo negócio".
Sendo assim os intertítulos deste filme, não são as habituais legendas do cinema mudo, mas sim o enquadramento histórico biográfico de cada cena.
Este filme foi concebido de uma maneira que permite até dobragem, com tecnologia que não existia na época, conceito esse que desde há muitos anos eu gostaria de ver aplicado num filme mudo. Não sei se o argumento original que continha as falas dos actores ainda existe...
Seja como for, de entre 1911 a 1914, o público de Lisboa incluindo o povo teve acesso a um filme com características futurísticas de diálogos falados, combinados com uma banda sonora da orquestra da Guarda Nacional Republicana. "Apesar do sucesso, a empresa Nandim de Carvalho suspendeu as sessões, por temer que afastasse a acostumada frequência burguesa."
Um aspecto muito interessante é a restauração das tintagens originais de 1911, elemento que faz toda a diferença num filme monocromático, cuja "tecnologia" não seria possível numa transmissão televisiva da RTP até 1980 (sinal a preto e branco), e até mesmo após o advento da cor em Portugal, a RTP continuava a transmitir versões feias e trucidadas a preto e branco de filmes como o "Nosferatu", quando o original já possuía um bonito leque de três cores monocromáticas como este filme português, com diferentes efeitos de noite e dia, exterior e interior.
Aqueduto das Águas Livres
Na imagem acima vemos o local de onde o assassino psicopata Diogo Alves atirava as suas vítimas, incluindo crianças, trata-se do arco central com 65 metros de altura sobre o actual Eixo Norte-Sul.
De todos os catorze arcos em ogiva destaca-se o Arco Grande. O maior arco da imponente arcaria foi a parte de mais difícil execução neste troço, e talvez de toda a obra. Mede 65 metros de altura e dista 29 metros entre pegões, sendo o maior arco ogival do mundo. Teve de assim ser concebido devido à passagem da ribeira de Alcântara entre os seus pegões. Em caso anteriores da História, optou-se por uma solução mais simples — a sobreposição de arcos — com o objectivo de vencer vãos tão grandes como este; neste caso tal não foi opção, pois destoaria da restante arcaria que atravessa o vale e ao mesmo tempo dá à obra um ar monumental e grandioso. De cada um dos lados do passeio existem duas placas iguais com a seguinte inscrição: Arco Grande/Altura do rio ao passeio/Em palmos: 296,75 - Em metros:65,29/Largura entre Pegões/Em palmos: 131 - Em metros:28,86.
Actualmente, debaixo destes arcos passam diversas vias de comunicação. Sob o Arco Grande passa a Av. Calouste Gulbenkian com seis vias de trânsito (3x2). Em 1887 foi inaugurada a linha de caminho-de-ferro, entre as estações de Campolide e Alcântara-Terra, passando por de baixo de um dos arcos; desde 1999 passa por aí também a linha de comboio que atravessa a Ponte 25 de Abril. Também o Eixo Norte-Sul, acabado em 1997, com seis vias (3/sentido) aí passa; devido à insuficiente largura entre pegões, a via está dividida em dois, passando cada um dos sentidos debaixo de arcos consecutivos.
É curioso que há mais de 100 anos atrás, os lisboetas chamavam de "arcos" ao aqueduto. No filme nunca surge a palavra "aqueduto" e é sempre usado o termo "arcos".
O filme foi mesmo filmado no aqueduto, e a técnica utilizada foi levantar a vítima no ar, cortar a filmagem, retomar a filmagem com um manequim no ar, que era atirado do aqueduto. Hoje tal não poderia ser feito, pois os manequins iriam atingir automóveis a circular no Eixo Norte-Sul e causar acidentes.
É suposto a menina se rir na cena, pois ela era muito pequena e não se apercebeu de que iria morrer, a criança terá julgado que o Diogo Alves estaria a brincar com ela ao colo. Segundo um intertítulo terá sido o único caso em que o psicopata sentiu remorsos, não por a vítima ser uma criança, mas pela inocência de não saber que iria morrer de forma horrorosa.
O filme foi filmado em apenas três semanas, apesar do seu grande valor histórico em muitos aspectos, haveria muito que podia ter sido feito de forma melhor com mais tempo e trabalho, nomeadamente poderiam ter contratado um ilusionista de profissão, para preparar as cenas do aqueduto, com ensaios e técnicas do ilusionismo de palco, da mesma forma que poderiam ter construído manequins com a mesma densidade de peso de um ser humano.
Do ponto de vista dos actores, estes são actores profissionais teatrais portugueses duma corrente artificial que não corresponde ao realismo das artes. Aqui deveria ter sido feito um casting a não-actores.
Não era objectivo do realizador criar uma obra-prima do Realismo ou um filme de autor, mas esta não deixa de ser uma boa obra pioneira do cinema comercial.
Cena cortada pelo realizador que eu achei muito interessante.
Na minha versão corrigida para 18 fotogramas por segundo, a duração do vídeo é de 30m33s, mas esta versão restaurada já inclui "deleted scenes" no final, no caso do meu vídeo de 18 fps, o filme original termina aos 24m23s, sendo os restantes 7 minutos compostos de "deleted scenes" ou planos não aproveitados pelo realizador.
À excepção da cena mostrada acima, todas as restantes são o primeiro take de cenas que correram mal, que depois o realizador filmou novamente para a versão final.
Eu gostei bastante da cena cortada que apresento, pois fico intrigado com o porquê da cena e acho fascinante as caretas de "mau" do actor Alfredo de Sousa, que aqui permitem um "close-up" da sua cara, que nunca se vislumbra bem na versão final, devido à câmera fixa, à distância para enquadrar o cenário. Fariam falta uns zooms ou close-ups à americana.
Em termos cinematográficos o filme consiste em "takes" longos sem cortes (à excepção do corte recorrente para atirar manequins do aqueduto e da cena do assalto por um buraco entre andares), quem viria a usar muito este método foram os países do Leste Comunista, durante a Guerra Fria a partir de 1950, mas aí eles possuíam câmeras móveis. Com apenas uma câmara fixa em 1911, a opção dos "takes" longos não foi a mais adequada, e teria sido preferível o realizador João Tavares ter utilizado o "método americano" (https://en.wikipedia.org/wiki/Film_editing#See_also) de cortes e montagens, com a câmera posicionada em locais diferentes em cada "take" da mesma cena, o resultado desta "encenação soviética" de "takes" longos é que não se vê bem a cara dos actores.
Estou a usar terminologia que não existia em 1911, no tempo dos pioneiros. Não sou nenhum entendido no assunto, mas penso que conseguirão entender bem a minha descrição da "cinematografia" do filme.
Um segundo motivo pelo qual considero este filme como sendo extraordinário no contexto do cinema mundial (o primeiro motivo é a existência de diálogos falados), é o seu conteúdo e género.
Este é um filme muito sério, numa época em que se fazia muita "coboiada" e "palhaçada". Não estou de forma alguma a menosprezar os géneros acção e comédia, mas eu sei bem que nessa altura o cinema era visto como uma atracção de feira. Este filme destaca-se em vários níveis, tal como o filme dinamarquês Häxan de 1922, em que escrevi:
Häxan (1922)
Um dos melhores filmes que já vi até hoje, a minha classificação pessoal é a de 100%, sem hesitar.
Resumindo este filme numa frase, isto é equiparável à serie de divulgação científica "Cosmos", apresentada pelo cientista Carl Sagan, fruto também de pesquisa rigorosa e feito também com a mesma dedicação e vontade em melhorar o mundo, através da luz do conhecimento e da razão; aliado a este factor cuja importância já em si não pode ser menosprezada, temos um visual encantador, fascinante e lindíssimo a nível artístico, na encenação cinematográfica de como os povos ignorantes da Idade Média imaginavam o diabo.
Este é o primeiro filme mudo que me deixou de tal forma cativado, que nem senti que estava a ver um filme mudo. Vi no You Tube (há uma versão com legendas em português e com banda sonora apropriada) mas também existe uma versão restaurada pela Criterion (que adorava ver).
Recomendação máxima da minha parte.
Os Crimes de Diogo Alves não será decerto tão importante como a obra dinamarquesa de 1922, não possui qualidade equiparável e não é do mesmo género e corrente. O seu valor e importância histórica devem-se a outros factores.
Um desses factores é a reconstituição histórica dos eventos macabros ocorridos entre 1836-1841. O realizador poderia ter optado pelo artificialismo de estúdio, mas montou mesmo a sua câmera no alto do Aqueduto das Águas Livres. Existem muitos realizadores (alguns até aclamados e apelidados de "mestres") cuja ideia pessoal e profissional de Cinema é o tele-teatro (ou filme de estúdio), mas não é o caso aqui.
O rigor histórico aqui, pode não conseguir passar o meu critério pessoal exigente, porque existem discrepâncias (erros) sistemáticos nos detalhes e pormenores, mas o filme está muito acima da média quando comparado com o conceito de filme histórico no Cinema actual.
Dois exemplos de erros:
Junto ao cadafalso, Diogo Alves quis confessar-se, pediu para ser o primeiro executado. O Celeiro proferiu algumas invocações religiosas e expirou. Tinham dado duas horas e a irmandade da misericórdia conduziu os dois cadáveres à morada derradeira. ― A Revolução de Setembro, 20/2/1841.
No filme existem três e não dois enforcados.
Diogo Alves manieta atrás das costas a menina, e lhe prende as mãos aos pés, e comprimindo-lhe o peito com os joelhos, coisa horrível para dizer-se, dobrando-a para as costas, estalando-a a matou. ― A Revolução de Setembro, 3/8/1841.
No filme, o método para assassinar a filha adolescente do Dr. Andrade, está errado.
Mas reparem que a nível geral, a acção e enredo do filme são muito rigorosos, por exemplo o filme respeita a descrição abaixo:
Porém, certa vez, nas sombras do aqueduto, um dos assaltados resistiu-lhe, ameaçando-o com uma pequena pistola. O assaltante teve de fugir, mas foi reconhecido. Entretanto, as autoridades aperceberam-se de quanto andavam enganadas com a origem dos cadáveres e proibiram o trânsito pelo aqueduto, cerraram os acessos, o que se manteve praticamente até aos nossos tempos. E começou a caça ao homem. Diogo Alves constituiu, então, uma quadrilha e mudou de método. Mesmo deixou de assassinar lançando as suas vítimas do alto, passando a asfixiá-las. Ele «raras vezes roubava que não matasse». Andando envolvido com uma taberneira, conhecida pela alcunha de Parreirinha, o ladrão dependia bastante das vontades desta. E isto acelerou a sua perdição, tanto mais que foi uma filha de dez anos da amante que prestou o mais importante depoimento contra ele. É que à miúda nada era escondido e ela de tudo sabia. A mulher, Gertrudes Maria, natural de Mafra, estava separada do marido e estabelecida com balcão e pipos na azinhaga de Águas Boas, a Palhavã. Diz-se que, num momento crucial, teve a noção da perigosidade do testemunho da filha e propôs-se matá-la.
Temos portanto um filme histórico de 1911, com bastante mais rigor do que a esmagadora maioria dos filmes históricos existentes, o que para mim é o segundo motivo, pelo qual considero este filme como sendo extraordinário no contexto do cinema mundial. O filme possui discrepâncias nos pequenos detalhes, mas a sua narrativa bate certo com o que li acerca dos factos, podendo várias das suas cenas serem aproveitadas por um documentário.
Opinião final
Gostei muito deste filme, e recomendo-o bastante. Foi por isso que criei uma banda sonora (a partir de músicas existentes no You Tube, que editei) e corrigi o "framerate" do filme. Como sabem eu tenho experiência em criar trailers musicais de filmes e sou apreciador de uma boa banda sonora (por exemplo tenho grande admiração pela banda sonora do "Conan, The Barbarian"). A minha banda sonora resulta de um esforço sério da minha parte, e não se trata de nenhuma brincadeira para me entreter. Espero que gostem...